Hoje sinto-me... Roxa!
A respeito da crise, com a crise
e por causa da crise, está-me a apetecer muito falar de coisas que se passaram
não assim há muitos anos, obviamente relacionadas com crise, embora a crise
fosse de outro tipo…
Na verdade, consigo sempre
surpreender-me com a curta memória que afeta os portugueses… Esquecemo-nos
depressa, tão depressa que é necessário registar cada bocadinho de ‘ocorrência’
para mais tarde recordar… É que também guardamos esta estranha capacidade de
recordar ‘mal’… De ‘recontar’ mal o que na realidade se passou…
Estou em crer que não o fazemos
por mal! Aliás, eu acredito sempre que nada do que fazemos é por mal… Até certo
ponto, somos naturalmente inocentes… De pouca memória, mas ingénuos…
Mas, a bem da verdade, é tempo de
restituir a verdade dos factos… Digo, para aqueles que já não se lembram mesmo
de nada, de nadinha do que se passou… Ainda nos anos setenta!
Sim, eu sei que muita gente ainda
não teria nascido nos anos setenta… Mas então não me venham falar na ‘conquista
de Abril’! Porque quem não sabe o que aconteceu no rescaldo do 25 de Abril,
também não sabe, obviamente, o que é o 25 de Abril!
E apetece-me, como dizia, falar
de crise! Falar de Abril! Falar das conquistas de Abril! E falar das perdas de
Abril… Ah, sim, aposto que não esperavam por esta: mas houve perdas em Abril.
E depois de Abril! Claro que sim! Alguém falou disto? Não me lembro… Mas,
claro, a memória é curta, é a minha tese do dia de hoje.
Eu vivi no tempo da PIDE!
Lembro-me de os meus pais terem sido interrogados pela PIDE. Lembro-me de ver a
minha mãe a tremer dos pés à cabeça enquanto durava o interrogatório, à porta
da casa onde vivíamos. E eu, do alto dos meus 5 anos, recordo-me de ter pensado
que não percebia porque raio tremeria a minha mãe, se o senhor que a entrevistava
era tão bem apessoado e parecia tão simpático… Pelo menos tinha um ar
educadíssimo, vestia uma linda gabardina branca (eu mantenho até hoje o meu
fascínio por homens de gabardina desde aí!) e exibia um agradável sorriso… Além
disso tirou-nos fotografias e tudo! Obviamente, só muitos anos mais tarde
compreendi a dimensão de tal ‘visita’!
Fomos viver para África,
continente de grandes esperanças, qualidade de vida e oportunidades! Se foram
cometidas atrocidades em África? Sim, muitas! Continua a haver, hoje como amanhã,
gente com mentalidade de colonizador, de conquistador, com espírito
esclavagista e necessidade de se impor pela força. E não, não era toda a gente
assim. Muito pelo contrário!
África inspirava-nos liberdade, a
PIDE e as perseguições ‘pidescas’ ficavam muito longe (embora houvesse alguns redutos
implantados, mas a sua influência era ínfima por comparação com a velha metrópole).
Muitos conheceram a verdadeira felicidade lá longe, enquanto exilados e outros simplesmente
desterrados… Muitos desconfiavam que a situação seria transitória, que afinal
África não passava de uma espécie de barril de pólvora prestes a explodir…
E um dia Abril chegou! Inebriados
de liberdade, os portugueses tomaram conta do poder, o que quer que isso
signifique. A voz do povo fazia-se ouvir… Mas estaria o povo preparado para construir
uma nação? Algo nos subiu à cabeça, e desatámos os nós dos fios que nos prendiam
a África… Quase dissemos ‘tomem lá isso e divirtam-se’. A coisa foi tão mal
feita que os portugueses regressaram em barda a Portugal… Contrariados, mas sem
outro remédio! Afinal tinham-nos retirado o chão de debaixo dos pés... Abruptamente
e sem acautelar qualquer tipo de interesses: portugueses ou africanos! Foi como
cortar o cordão umbilical de uma criança ainda por nascer! E a isso pode
chamar-se crime…
Chamaram-nos ‘retornados’, e
trataram-nos como uma espécie de parentes pobres… Alguém que chegou para ‘roubar
os empregos’ dos que cá estavam… Sim, ouvi esta expressão muitas vezes! E a
nova nação não estava minimamente preparada para receber os que regressavam de
mãos a abanar, no sentido literal do termo… Sim, de África viemos ‘enxotados’ e
aqui fomos ‘enxovalhados’… Éramos filhos de ninguém! E o que foi feito?
Pois foi, pusemos mãos à obra!
Recomeçámos do zero! Criámos emprego! Agarrámo-nos ao que havia, e não havia,
fazendo das fraquezas forças para alimentar os nossos filhos!
Eu tive um papel fácil: era filha!
Só tinha de estudar para cumprir com a minha parte. Posso dizer que tive muita sorte!
Lembro-me de ter ficado chocada
ao visitar amigas minhas que viveram circunstâncias bem mais difíceis,
partilhando alojamento em comunidade (imensamente) alargada, vivendo num quarto
com toda a família, chorando em silêncio pelo passado perdido… Repito, eu tive
muita sorte!
Vi amigas a vender roupa na rua,
porque afinal tinham de comer, e vender na rua é trabalhar, não é roubar!
Chorei ao pensar na vida que tiveram antes, e como de repente se pode passar de
tudo ter a tudo ter de fazer para sobreviver! Rezei por elas e suas famílias!
Rezei por nós! Rezei por mim! Dei graças pela sorte que sempre tive! Interiorizei
tudo o que vi e vivi para me tornar uma pessoa melhor a cada nova experiência.
Por isso não aceito de ânimo leve
lições de democracia, ou que venham hoje falar-me de “Abril e suas conquistas”!
Pelo menos não sem falar de “Abril e suas perdas”! E também não gosto de ouvir
falar constantemente em ‘crise’! Crises há muitas, sempre haverá, por muito que
nos doa! E cada crise surge num momento das nossas vidas em que é preciso
revolucionar algo, romper algo, iniciar algo, ou reiniciá-lo de forma
diferente!
As crises doem! É esse o seu
objetivo! Marcar, magoar e cunhar em nós o selo da necessidade de mudar! Para
melhor, obviamente, já que evidentemente estávamos a fazer algo de forma errada…
Esta crise terá necessariamente de
contribuir para uma maior união entre os portugueses! Para uma maior
solidariedade! Para um regresso à origem dos valores profundos, do amor e
amizade, da partilha, do carinho e da gestão dos afetos sinceros. Relativizando,
esta crise será, como tantas outras, passageira e, mais importante, uma grande
lição de humildade! Aproveitemo-la bem!
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