Hoje sinto-me... Azul!
Maria abanou a
cabeça, sacudindo a farta cabeleira de negros caracóis. Duas grossas lágrimas
deslizaram suavemente pelo seu sereno rosto e logo os claros olhos castanhos se
inundaram de novo, brotando profusa e continuamente numa cadência perfeita: 5 segundos,
2 lágrimas, 5 segundos, 2 lágrimas, 5 segundos, 2 lágrimas…
Contemplava impotente
a retroescavadora que implacavelmente lhe destruía a casa que fora sua nos
últimos 40 anos. Ali casara, ali fora muito feliz, ali tivera os seus 3 filhos,
provavelmente à custa de toda a água que sofregamente bebera da Fonte Santa, a
fonte de águas milagrosas que, segundo afiançavam os locais, garantia gravidez
na certa…
E agora aquilo, toda
aquela destruição, já fora a igreja, agora as casas, os monumentos, tudo arrasado…
Até o cemitério fora revolvido, violado, devassado, os corpos e ossadas
trasladados. Nada iria escapar, nada exceto pequenas “lembranças”, como as
pedras da Fonte Santa, destinadas a abrilhantar o museu que iria nascer na nova
aldeia. Afinal era preciso assegurar o registo histórico, mostrar que tudo
aquilo existira um dia, fora real e não um mero delírio onírico de um espírito
fantasioso.
Antes haviam já filmado
e tirado fotografias a tudo, às gentes, aos lugares… Mas impossível registar a luz
do sol, não havia brilho como aquele, energia como aquela. Só nas memórias
permaneceria indelével tal claridade.
Aas celebrações e as
manifestações de solidariedade em comunidade eram verdadeiramente dignas de
registo. Viver ali era experienciar um permanente estado de felicidade pura,
inigualável. Aquele era um local de luz, um lugar mágico, de vida, um lugar que
fora certamente abençoado por Deus, disso não havia a menor dúvida. Por isso
lhe chamaram poeticamente Aldeia da Luz…
Esta noite aquela Luz
apagou-se para sempre. Porque as coisas más acontecem sempre durante a noite:
sem sol tudo fica negro… Irrevogavelmente negro!
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